Crônica engraçada

Este mês de março estamos trabalhando a Crônica, nas oficinas de criação literária da Associação Literária Letras no Jardim.
No tópico anterior definimos o que vem a ser a Crônica e foi proposta uma tarefa. Quem quiser enviar e estiver dentro do assunto, se aceitar, será publicada no nosso blog.



O que vem a ser uma crônica engraçada?

É preciso expor muito bem uma situação ou contexto para ter graça. O primeiro passo para escrever uma crônica é definir seu ponto de vista. Cada cronista adota um estilo particular – há aqueles que usam da ironia para marcar sua linguagem, há outros que abordam assuntos cômicos por natureza, ou ainda os cronistas que constroem discursos engraçados por meio de associações inusitadas. Quanto mais original e criativa, melhor será a crônica.
A seguir, uma crônica engraçada de Luis Fernando Veríssimo. Lembre que na crônica o autor insere a sua opinião, pode ser na terceira ou primeira pessoa, pode conter diálogos, tem que seguir uma cronologia, você está seguindo uma enumeração de fatos.


O Flagelo do Vestibular - Luis Fernando Veríssimo

Não tenho curso superior. O que eu sei foi a vida que me ensinou, e como eu não prestava muita atenção e faltava muito, aprendi pouco. Sei o essencial, que é amarrar os sapatos, algumas tabuadas e como distinguir um bom Beaujolais pelo rótulo. E tenho um certo jeito — como comprova este exemplo — para usar frases entre travessões, o que me garante o sustento. No caso de alguma dúvida maior, recorro ao bom senso. Que sempre me responde da mesma maneira? "Olha na enciclopédia, pô!"
Este naco de autobiografia é apenas para dizer que nunca tive que passar pelo martírio de um vestibular. É uma experiência que jamais vou ter, como a dor do parto. Mas isto não impede que todos os anos, por esta época, eu sofra com o padecimento de amigos que se submetem à terrível prova, ou até de estranhos que vejo pelos jornais chegando um minuto atrasados, tendo insolações e tonturas, roendo metade do lápis durante o exame e no fim olhando para o infinito com aquele ar de sobreviventes da Marcha da Morte de Batan. Enfim, os flagelados do unificado. Só lhes posso oferecer a minha simpatia. Como ofereci a uma conhecida nossa que este ano esteve no inferno.

— Calma, calma. Você pode parar de roer as unhas. O pior já passou.

— Não consigo. Vou levar duas semanas para me acalmar.

— Bom, então roa as suas próprias unhas. Essas são as minhas...

— Ah, desculpe. Foi terrível. A incerteza, as noites sem sono. Eu estava de um jeito que calmante me excitava. E quanto conseguia dormir, sonhava com escolhas múltiplas, a) fracasso, b) vexame, c) desilusão. E acordava gritando, NENHUMA DESTAS! NENHUMA DESTAS! Foi horrível.

— Só não compreendo porque você inventou de fazer vestibular a esta altura da vida...

— Mas quem é que fez vestibular? Foi meu filho! E o cretino está na praia enquanto eu fico aqui, à beira do colapso.

Mãe de vestibulando. Os casos mais dolorosos. O inconsciente do filho às vezes nem tá, diz pra coroa que cravou coluna do meio em tudo e está matematicamente garantido. E ela ali, desdobrando fila por fila do gabarito. Não haveria um jeito mais humano de fazer a seleção para as universidades? Por exemplo, largar todos os candidatos no ponto mais remoto da floresta amazônica e os que voltassem à civilização estariam automaticamente classificados? Afinal, o Brasil precisa de desbravadores. E as mães dos reprovados, quando indagadas sobre a sorte do filho, poderiam enxugar uma lágrima e dizer com altivez:

— Ele foi um dos que não voltaram...

Em vez de:

— É um burro!

Os candidatos à Engenharia no Rio de Janeiro poderiam ser postos a trabalhar no Metrô dia e noite, quem pedisse água seria desclassificado. O Estado acabaria com poucos engenheiros novos — aliás, uma segurança para a população — mas as obras do Metrô progrediriam como nunca. Na direção errada, mas que diabo.
O certo é que do jeito que está não pode continuar. E ainda por cima, há os cursinhos pré-vestibulares. Em São Paulo os cursinhos estão usando helicópteros na guerra pela preferência dos vestibulandos que terão que repetir tudo no ano que vem. Daí para o napalm, o bombardeio estratégico, o desembarque anfíbio e, pior, uma visita do Kissinger para negociar a paz, é um pulo. Em São Paulo há cursinhos tão grandes que o professor, para se comunicar com as filas de trás, tem que usar o correio. Se todos os alunos de cursinhos no centro de São Paulo saíssem para a rua ao mesmo tempo, ia ter gente caindo no mar em Santos. O vestibular virou indústria. E os robôs que saem das usinas pré-vestibulares só tem dois movimentos: marcar cruzinha e rezar.

O filho da nossa nervosa amiga chegou em casa meio pessimista com uma das provas.

— Sei não. Acho que tabulei. O Inglês não estava mole.

Mas meu filho, hoje não era inglês! Era Física e Matemática!

— Oba! Então acho que fui bem.

Disponível em:

http://a-neurose.blogspot.com/2010/01/cronica-lfv-o-flagelo-do-vestibular.html 


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Segundo Massaud Moisés, a crônica registra a variação emocional do escritor. A curva térmica do texto varia de acordo com o estado de espírito do cronista no momento de compor sua página diária. Qualquer tema serve de assunto: política, economia, sociologia, futrbol, tránsito, viagens, amizades, etc.

MOISES, Massaud. A Criação Literária, Prosa. p.251. CULTRIX: São Paulo, 1997.


Neste caso, atentar ao assunto a ser transformado em fato humorístico. Fica a tarefa para o próximo encontro: crônica humorística. Pode ser um fato familiar ou algo corriqueiro do dia-a-dia. Lembre de enviar para:
letrasnojardim@gmail.com

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