O Conto Africano

Continuando com nosso programa para 2020, nos deparamos com o conto africano. Só para lembrar, o que é o conto?
Na estrutura do conto há um só drama, um só conflito. Rejeita as digressões e as extrapolações, pois busca um só objetivo, um só efeito. Com isso, a dimensão do conto é reduzida: o autor usa a contração, isto é, a economia dos meios narrativos. Essa preferência pela concisão e a concentração dos efeitos torna o conto uma narrativa curta. Uma característica importante é que ele termina justamente no clímax, ao contrário do romance em que o clímax aparece em algum ponto antes do final.
O espaço físico da narrativa normalmente não varia muito devido à própria dimensão do conto. A variação temporal não importa: o passado e o futuro do fato narrado são irrelevantes. Caso seja necessário, o contista condensa o passado e o expõe ao leitor em poucas linhas.
Devido a essas características (pequena extensão e pouca variação espacial e temporal) o número de personagens que participam do conto é pequeno. Também não há espaço para personagens complexas: a ênfase é colocada em suas ações e não em seu caráter.
É claro que essas características do conto podem variar de uma época para outra, mas essas variações ocorrem em maior ou menor grau constituindo sempre uma estrutura básica que configura o gênero.

A literatura da África tem uma longa história, uma vez que se conhecem obras literárias do Antigo Egito. Na maior parte da África, a escrita só começou a ser usada depois da colonização, mas os Africanos tinham e continuam a prezar a literatura oral. As principais inspirações para os escritores da literatura africana são, certamente, a terra, os conflitos vividos na região, assim como a beleza dos lugares que existem por lá e dos sofrimentos que passaram nos setores social e político.
Outro importante assunto abordado pelos escritores, são os contrastes que são vividos diariamente na região. Após guerras e a exploração da colonização europeia, a África do Sul, por exemplo, conseguiu se recompor, enquanto a Somália possui um número maior de animais do que de humanos, tendo um ambiente muito mais parecido com uma Serra Leoa.
Os principais autores da literatura africana são Wole Soyinka, autor nigeriano quase desconhecido no Brasil, mas que ganhou o Nobel de Literatura no ano de 1986, sendo considerado o dramaturgo mais importante de todo o continente; Neguib Mahfuz, egípcio; Nadine Gordimer, que também foi um dos grandes nomes da África do Sul, tendo como suas obras de maior sucesso July’s People, A Arma da Casa, The Lying Days, entre outras; Mia Couto, autor de Moçambique que escreveu obras como O fio das Missangas, Vozes anoitecidas, entre outras; além de muitos outros autores renomados.

Apresentamos a escritora Nadine Gordimer da África do Sul.
Recebeu o Nobel de Literatura de 1991 e, mais recentemente, a Legião da Honra, na França. Continua a explorar os problemas que assolam o país em livros como O engate (2004) e Beethoven was one-sixteenth black and other stories (Beethoven era 1/16 negro e outros contos).
A escritora foi uma das mais importantes vozes contra o apartheid na África do Sul e, a maior parte dos seus mais de 30 livros, foi focada na situação social do país durante esse período. Faleceu em 2014. Seus livros, A Arma da Casa; The Lying Days; A World of Strangers; Occasion for Loving; A Guest of Honour; The Conservationist; July’s People; The Pickup; Face to Face; A Soldier’s Embrace; Loot: And Other Stories.

No conto "O Pessoal de July"
retrata a história da família Smales, que - ao se ver atingida por uma desordem social de grandes proporções - só tem como solução fugir da cidade dominada pelo homem branco e abrigar-se na aldeia natal do seu criado negro – July.
No livro, afastados da sua casa, da sua civilização "branca", estrangeiros numa aldeia de negros, os Smales esperam por melhores dias, mas, até lá, têm de reaprender a viver e a perder toda a noção da “ocidentalidade”. Sem privacidade, sem hábitos de higiene, sem conforto, desprotegidos pela lei, criam-se tensões, acumulam-se memórias de um passado que nunca mais poderá regressar.A “cidade branca” está distante e esta família tem de viver à custa dos serviços e da bondade dum criado de atitudes inquietantes: se, por um lado, este não se queixa de ter sido mal tratado pelos amos durante a época do apartheid e não aparenta qualquer tipo de ressentimento, por outro, July busca não só a sua emancipação, mas também impor um respeito nunca antes obtido.
A tensão entre a gente negra da aldeia versus família Smales nunca se dilui, mas, pelo contrário, agrava-se até a um ponto de quase ruptura, até ao ponto de desejarem abandonar a aldeia, embora não tendo sítio para onde ir. Estão presos a esta aldeia sofrendo uma dupla pressão: a dos habitantes e a da sua própria consciência.
Do livro: July's People, Editora Raven/Taurus.

Mia Couto - 1955
é um escritor, poeta e jornalista moçambicano. Ganhador do Prêmio Camões de 2013. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, ocupante da cadeira n.º 5.

Conto “Inundação”
Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.
A casa, aquela casa nossa, era morada mais da noite que do dia. Estranho, dirão. Noite e dia não são metades, folha e verso? Como podiam o claro e o escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava que a voz de minha mãe em canto se escutasse para que, no mais lúcido meio-dia, se fechasse a noite. Lá fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos para sempre.
Certa vez, porém, de nossa mãe escutamos o pranto. Era um choro delgadinho, um fio de água, um chilrear de morcego. Mão em mão, ficamos à porta do quarto dela. Nossos olhos boquiabertos. Ela só suspirou:
– Vosso pai já não é meu.
Apontou o armário e pediu que o abríssemos. A nossos olhos, bem para além do espanto, se revelaram os vestidos envelhecidos que meu pai há muito lhe ofertara. Bastou, porém, a brisa da porta se abrindo para que os vestidos se desfizessem em pó e, como cinzas, se enevoassem pelo chão. Apenas os cabides balançavam, esqueletos sem corpo.
– E agora – disse a mãe -, olhem para estas cartas.
Eram apaixonados bilhetes, antigos, que minha mãe conservava numa caixa. Mas agora os papéis estavam brancos, toda a tinta se desbotara.
– Ele foi. Tudo foi.
Desde então, a mãe se recusou a deitar no leito. Dormia no chão. A ver se o rio do tempo a levava, numa dessas invisíveis enxurradas. Assim dizia, queixosa. Em poucos dias, se aparentou às sombras, desleixando todo seu volume.
– Quero perder todas as forças. Assim não tenho mais esperas.
– Durma na cama, mãe.
– Não quero. Que a cama é engolidora de saudade.
E ela queria guardar aquela saudade. Como se aquela ausência fosse o único troféu de sua vida.
Não tinham passado nem semanas desde que meu pai se volatilizara quando, numa certa noite, não me desceu o sono. Eu estava pressentimental, incapaz de me guardar no leito. Fui ao quarto dos meus pais. Minha mãe lá estava, envolta no lençol até à cabeça. Acordei-a. O seu rosto assomou à penumbra doce que pairava. Estava sorridente.
– Não faça barulho, meu filho. Não acorde seu pai.
– Meu pai?
– Seu pai esta aqui, muito comigo.
Levantou-se com cuidado de não desalinhar o lençol. Como se ocultasse algo debaixo do pano. Foi à cozinha e serviu-se de água. Sentei-me com ela, na mesa onde se acumulavam as panelas do jantar.
– Como eu o chamei, quer saber?
Tinha sido o seu cantar. Que eu não tinha notado, porque o fizera em surdina. Mas ela cantara, sem parar, desde que ele saíra. E agora, olhando o chão da cozinha, ela dizia:
– Talvez uma minha voz seja um pano; sim, um pano que limpa o tempo.
No dia seguinte, a mãe cumpria a vontade de domingo, comparecida na igreja, seu magro joelho cumprimentando a terra. Sabendo que ela iria demorar eu voltei ao seu quarto e ali me deixei por um instante. A porta do armário escancarada deixava entrever as entranhas da sombra. Me aproximei. A surpresa me abalou: de novo se enfunavam os vestidos, cheios de formas e cores. De imediato, me virei a espreitar a caixa onde se guardavam as lembranças de namoro de meus pais. A tinta regressara ao papel, as cartas de meu velho pai se haviam recomposto? Mas não abri. Tive medo. Porque eu, secretamente, sabia a resposta.
Saí no bico do pé, quando senti minha mãe entrando. E me esgueirei pelo quintal, deitando passo na estrada de areia. Ali me retive a contemplar a casa como que irrealizada em pintura. Entendi que por muita que fosse a estrada eu nunca ficaria longe daquele lugar. Nesse instante, escutei o canto doce de minha mãe. Foi quando eu vi a casa esmorecer, engolida por um rio que tudo inundava.

Do livro: Mia Couto em O Fio das Missangas



Referências:

Encyclopedia of African Literature, ed Simon Gikandi, London: Routledge, 2003.
A Literatura Africana e a Crítica Pós-Colonial: Reconversões – I. Mata.

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